segunda-feira, 3 de abril de 2017

Francesca da Rimini ou O Beijo




I

Amor nasce do engano
Ao trocar um pelo outro:
Quando pensamos tê-lo,
Outro se apresenta.
Amor, esse doce enlevo,
Tira-nos os pés do chão,
E deixa a cabeça a sonhar,
Leva-nos em direção contrária
À que deveríamos seguir.
Amor – esse mal transformado em bem –
Trai-nos antes de trair.
Eu fui a seduzida, não a que seduziu.
Por um enlevo de amor fui atraída
E traída pelo meu próprio amor.

3/04/2017 – 20h46

II

O espírito não ama a carne.
Quem amo não é meu amor.
Meu amor me segue, mas não me vê.
Sou invisível para ele e, ele, para mim.
O que é o amor senão algo maior que eu?
Segue-me com o olhar, mas suas mãos não me tocam.
Amor não escolhe os filhos, nem a quem amar.
Amor se dá sem ver e tudo que busquei foi o amor.
Se não fui até ele, o amor me encontrou,
E me fez escrava de seus segredos.
A quem diria quem eu amava?
Quem vivia como eu?
Se alguém não escolhe o amor,
O amor escolhe o seu par.

4/04/2017 – 12h34

III

Obscuro é o mesmo amor que ilumina.
Suas dobras, sombras e laços
Escondem um lado que se entrevê de sobressalto.
Esta é a mesma ânsia do amor: tudo ver,
Tudo saber, tudo ter de uma só vez,
Como se os corpos contivessem o infinito.
Os corpos não podem conter tanto amor,
Por isso tornam a se amar
Numa febre insaciável.
Os beijos se aproximam
Como margens de um mesmo rio.
E, na sofreguidão que vivem,
O tempo passa sem que eles sintam.

19/04/2017 – 10h30

IV

Minha fragilidade é minha força.
Ao mesmo tempo que me dou, tomo de volta
Teu olhar e tua mão ao roçar meu braço.
Detenho-me ao ouvir teu riso
A soar nos ares como trinado de pássaros.
As árvores sibilam ao vento, enquanto te espero,
E se vestem de luar para clarear meus olhos.
Andas à minha volta à minha espera.
Quem sou para ti, que não caibo em mim?
Que fontes repetem teu nome?
Que saudades sinto que nem eu sei?
Meu sangue tinge as romãs,
E meus olhos veem o céu acima de tua cabeça.
Sou tua frágil amada à tua espera.

19/04/2017 – 17h56

V

Acordo de sonhos desfeitos,
Tu e eu, à volta da árvore,
Onde nos beijamos.
Foi este nosso pecado?
Como água para aplacar a sede,
Busco a fonte em teus lábios.
Só tu me sacias a ânsia
Deste amor à beira do precipício.
Na ponta de teus dedos,
Encontro o carinho que procuro.
Em minhas mãos, acolho-te inteiro
Num leito de sedas brancas.
Vivemos até que o amor acabe,
Ou ponha um fim ao nosso amor.

19/04/2017 – 21h34 

VI

O amor me conduziu por uma longa estrada.
Levou-me a Rimini, onde desposei Giovanni,
Que, embora culto, era manco
E não se importava comigo.
Minha beleza de nada lhe valia:
Eu era apenas um adereço de sua riqueza.
Nasci em Ravena, e meu pai me deu
Em casamento ao completar vinte anos.
Mal eu sabia do meu tormento e martírio,
Quando, ao chegar, fui recebida por Paolo,
Seu irmão, que se desmanchou em mesuras,
Amando-me desde aquele instante.
Que desventuras me trouxe o amor!
Em que abismos me lancei por amor! 

20/04/2017 – 19h22

VII

Duas famílias em guerra selaram um tratado de paz,
Um casamento celebrado às cegas,
E minha vida entregue ao senhor de Rimini.
Aceitei o inaceitável e o destino me cobrou:
“O que se dá de graça, custa caro ao ser pago”.
Joguete de grandes forças,
O amor se moveu para me salvar.
O que eu não podia ter em vida, 
Passei a desejar na morte: 
Assim teria o que me foi negado. 
“Não se pode negar o amor aos que se amam”.
Arrebatou-me, seduzindo-me com palavras,
E, ao lermos sobre Lancelot e Guinevere,
Paolo me beijou os lábios lívidos de espanto. 

21/04/2017 – 15h45

VIII

Dido e Enéas, Marco Antônio e Cleópatra,
Helena e Páris, Tristão e Isolda,
Que se entregaram à paixão e à luxúria,
Vivem no Segundo Círculo do Inferno,
Onde Dante e Virgílio me encontraram.
A espada nos atravessou e uniu-nos 
Num só corpo que gira no vento eterno.
Eis o que o amor fez por capricho:
Levou-nos por caminhos obscuros
Lançando-nos no fundo da perdição.
De lá, ergo o rosto para chamar meu amado, 
Que clama por mim, e eu respondo
Com o mesmo amor que senti em vida:
A breve vida de um grande amor.

21/04/2017 – 16h10

IX

Segui-te em ventura e recebi de ti o primeiro beijo.
Tu não eras senão aquele que me amou por mim mesma.
Sou a senhora das trevas, que viveu este amor
Em segredo. Quem sou eu, senão uma pecadora?
Quem sou, senão aquela que viu o amor chegar
E dele não se afastou?
Cruzei as ruas embandeiradas, o povo a bradar
O nome que me deram ao nascer.
Para isso vivi: amar a noite e entregar-me a ela,
Servir-te para que me sirvas,
Tornar-me livre, pois só o amor
Contém todas as respostas que busco.
Te tornaste meu quando me conheceste.
Te conheci para me tornares o teu amor.

18/06/2017 – 15h55

X

Sou Francesca da Rimini.
Casei-me a mando de meu pai
Com um homem sem amá-lo. 
Chorei por noites a fio, até vir seu irmão
Em meu auxílio, dizendo-me para não desesperar.
Tamanha beleza não merece tanto sofrimento, 
Ele disse, e tudo faria para me consolar.
Trouxe-me um livro para lermos juntos
E, daquelas palavras, nasceu nosso amor.
O que buscamos veio ao nosso encontro.
O amor está sempre à espreita.
E, dessa busca, surgiu o beijo,
O mesmo que selou nosso destino
E, por causa dele, ceifou nossa vida.


18/06/2017 – 16h03 
Thereza Christina Rocque da Motta
(inéditos) 



Um comentário:

  1. Thereza... Tem TANTA referência da Alta Literatura que eu vou precisar de tempo pra produzir um texto à altura do seu - em crítica. Eis que o possível título de melhor poetisa viva do país - teríamos em Adélia Prado outra candidata? - é mais do que justo. O texto é fantástico!

    Receba minhas melhores.
    Do seu: Gustavo.

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